BEATRIZ
Beatriz
esperou Fred chegar até a uma e trinta da manhã.
Checou se o
telefone tinha linha pelo menos mil vezes.
Tentou
adivinhar o ruído do motor do carro entre as centenas de veículos que
circulavam pela rua General Osório.
O transito
foi minguando. Sexta-feira, 18 de Dezembro já havia acabado. Outro sábado
começara há pouco e Fred não chegou.
Ele tinha
ligado de tarde, lá pelas seis avisando que já chegava, vindo do Rio, onde
morava.
Beatriz
esperou, a TV ligada no programa de entrevistas que sempre assistiam quando
estavam juntos.O apresentador muito gordo e muito esperto sempre era mais
atraente que seus convidados.
Mais uma
vez ligou para o celular. Fora da área de cobertura ou desligado.
Como
estender a mão e desligar o interruptor de um namoro de nove meses? Como
apertar o gatilho e acabar com essa gestação, essa dor de esperar? De ver Fred
levando o celular até para o banheiro? De ter a plena certeza da existência de
outra mulher?
Regina.
O nome dela
era Regina. Até isto Beatriz já sabia.
Sabia
também o número do telefone, pois apesar de Fred tentar manter o celular
afastado, sempre há um momento, uma chance, uma centelha em que uma mulher
consegue obter aquela informação vital, o telefone da Outra.
Quem seria
a Outra afinal? Beatriz ou Regina? Quem era matriz, quem era filial?
Ligar para
aquele numero de telefone, daqui mesmo de Petrópolis, era terminar o namoro.
Abrir mão.
E se
estivesse enganada?
Beatriz
sabia que não estava, que não adiantava mais tentar esconder de si mesma,
Regina existia e Fred estava lá.
Ter outra
mulher na mesma cidade em que ela morava! Que coisa doida, porque não arrumava
uma no Rio? Será que ele tinha uma terceira no Rio?
Ah, Deus,
assim Bia ia entrando numa paranóia sem fim...
Bia e Fred se conheceram na internet, num site
de namoro. Engraçado, os apelidos de cada um eram perfeitos, ele Lancelot, ela
Guinevere, destino.
Só podia
ser destino.
Tinham
muitas coisas em comum, trocaram e-mails que aos poucos foram deixando de ser
apenas informativos, mostraram seus rostos em fotos escolhidas, mostraram seus
gostos por poesia, banho de chuva, bicicletas, tudo combinava.
Lancelot e
Guinevere.
Beatriz finalmente encontrara seu cavaleiro de
armadura brilhante
Brincavam
com metáforas, e mesmo antes de sequer ter ouvido a voz de Fred ao telefone,
Bia já estava apaixonada.
Logo cedo
ligava o computador, a espera da mensagem do dia.
Finalmente
trocaram telefones, e até da voz dele Bia gostou, voz de menino, de namorado
dos tempos do colégio, marcaram de se conhecer.
Bia já
havia perdido qualquer sombra de cautela, e o encontro seria ali mesmo no
apartamento pequeno e funcional.
Fred não
era nenhum estranho.
Lancelot
chegou, meio tímido, sentando na beirada do sofá. Os dois meio sem graça, ambos
gostando do que finalmente viam, porém ainda sem a intimidade que pensavam ter.
Ele pediu
um abraço.
O braço
forte de Fred por trás de sua cintura, os corpos muito juntos, o beijo foi
perfeito, a queda no abismo profundo, um mergulho em águas transparentes,
Lancelot Guinevere, Fred e Bia.
Perfeição.
Fizeram
amor no sofá, depois riram, brincaram, conversaram como velhos amigos, não foi
encontro, foi reencontro.
Fred
brincou “– Com você, eu corro o risco de me apaixonar...” Bia já não se possuía
mais, não havia riscos, a paixão já estava nela, tempo perdido tentar
questionar.
O namoro
começou ali, se falavam quase todos os dias, os e-mails perderam a razão de
existir.
Bia
escutava Fred com muita atenção, encantada por sua vivência. Apesar da pouca
diferença de idade, ele tinha vivido tão mais do que ela. Fred já tinha sido de
tudo um pouco na vida, meio nômade, meio agricultor, viveu na cidade e no
campo, sozinho ou acompanhado, experimentou muitas coisas e pôde escolher o que
de melhor. Já meditara na floresta por quase um ano, monástico, a barba
crescida, afastado do convívio humano em busca do autoconhecimento, de uma filosofia holística. Soubera das
origens do mundo, recebera informações interplanetárias, mas nada disso o
transformara num fanático, não... Tinha um jeito de moleque, e o sorriso
fazia franzir os olhos cor de mel esverdeado, e também o modo ora
selvagem ora carinhoso de fazer amor.
Amor de
bicho, romance em francês.
Perfeição.
Fred era
tudo o que Bia sonhara.
Ela jamais
tinha dormido num sleeping bag, não acampara nem na sala da casa dos pais,
nunca tinha viajado de carona, namorara um pouco, mas ninguém como Fred, e esse
homem tão fantástico dizia que depois de tanta estrada finalmente encontrara a
mulher de sua vida.
Bia era ciumenta,
afinal, como se crer merecedora desse tesouro? Mas Fred a acalmava, deixava
claro que depois de ter caminhado desertos, não precisava de mais ninguém para
ser feliz.
Como não
acreditar?
Os meses
passaram, a paixão não.
Porém os
indícios da existência velada de Regina foram se tornando cada vez mais óbvios,
até que a descoberta do número do telefone cimentou a dor no coração de Bia.
Foi preciso
uma garrafa de vinho branco para criar coragem e ligar.
Uma e
trinta da manhã, a voz alegre e desperta da mulher ao atender ao telefone foi
mudando de tom quando soube que a ligação era para Fred. Talvez no susto,
Regina foi chamar o companheiro para atender ao telefone, ao fundo a mesma
musica de encerramento do programa de entrevistas tocada pela banda que acompanhava
o gorducho apresentador. Alguns minutos depois, Regina retornou dizendo que não
havia Fred algum naquela casa, era engano com certeza.
Bia então
calmamente informou quem era, e há quanto tempo sabia sobre Regina, e há quanto
tempo convivia com Fred e de que espécie era o relacionamento dos dois. Ficou
pasma, porém ao saber que Regina o conhecera antes dela, também pela internet.
Ele Lancelot, ela, Regina, Morgana, nada
mais perfeito do que esta coincidência. Coisa do destino.
Regina
botou Fred porta a fora do apartamento.
Bia botou
Fred porta fora do seu coração.
Ás cinco da
manhã de um sábado chuvoso a campainha de Bia tocou, e um Fred furioso tentou
argumentar que tudo aquilo era uma grande loucura. Ele nunca estivera com Regina, que não
passava de uma amiga, mas que maldosamente tentara envenenar Bia contra ele.
O vinho e o
valium tornaram Bia extremamente calma.
Calma o
suficiente para sem sequer se levantar do sofá indicar que a mesma porta por
onde Fred entrara deveria ser o caminho para que ele saísse de sua vida.
A vida iria
continuar, mas no momento tudo o que Bia sentia era estar caindo de muito alto,
e pelo caminho da queda ia vendo em forma de quadros os momentos vividos com
seu Lancelot, e as histórias que ele lhe contara.
Escutava o
zumbido das abelhas que ele criou um dia, caindo mais e mais fundo, acompanhada
por seus sonhos que decompunham em cacos coloridos. Nem Guinevere, nem Bia,
agora era Alice na toca do Coelho, e adormeceu.
Triste, mas muito, muito verdadeiro.
ResponderExcluirmais verdadeiro do que parece... bjs
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